Homo Mineralis [Indelével Presença]

CP

Catarina Pires

Memória. Permanência. Recolha. Seleção. Representação. Exposição. Classificação. Inventariação. Catalogação. Conservação. Espaço demarcado. Lugar simbólico. Limite geográfico. Fronteira. Viagem. História. História Natural. Ciência. Técnica. Conhecimento. Travessia. Passado e Futuro. Coleção.

Estas poderiam ser [algumas d’] as palavras - chave que abrem as portas para um espaço peculiar: o Museu. É este o lugar acerca do qual iremos aqui falar. Na realidade, trata-se do Gabinete de Domingos Vandelli. De Curiosidades. Gabinete de Curiosidades. O que, no fundo, só vem confundir.

Iremos, se me permitem, por camadas. Estratigrafias quase minerais. Domingos Vandelli é um homo mineralis: um fóssil mouseiologicus. A TafoMouseiologia[1] [do Gr taphós, enterramento, sepultura + mouseîon, museu + lógos, estudo] é a ciência que estuda a fossilização destas espécies biológicas, ou seja, analisa e interpreta os processos de inclusão dos restos destes seres nos contextos museológicos.

A primeira camada estratigráfica da espécie remonta, provavelmente, a uma Antiguidade muito remota, há cerca de vinte e três séculos atrás, nesse longínquo tempo em que Ptolomeu Sóter, rei do Egito, criou o MOUSEION de Alexandria e o consagrou à divina criatividade do intelecto humano. Estrabão, geógrafo - historiador grego, é quem o afirma e regista. Conta também que este, diríamos, protótipo da casa do Saber, com os seus vastos e luxuriantes edifícios e jardins, bibliotecas e galerias, serviu durante cinco séculos de lugar de estudo das artes e das ciências. Mais que um museu, o grande Mouseion foi um percursor da Universidade. A imbricação entre o Museu e a Universidade parece ter, afinal, um longo passado de raízes comuns. Domingos Vandelli, sabemo-lo bem, foi professor da Universidade de Coimbra e Diretor do seu Museu de História Natural, do Jardim Botânico e do Laboratório Químico da Universidade de Coimbra e do Palácio da Ajuda, em Lisboa. Foi também membro impulsionador e fundador da Academia das Ciências. Para além de outras menos conhecidas facetas, foi intelectual teórico-prático interessado nas coisas da Natureza. Maçónico, talvez. Transnatural. Naturalia e Artificialia. A vida em contínua exposição.

A rota do seu percurso parece bem traçada. A memória da sua passagem afigura-se, portanto, inquestionável.

Simbioses

N’ As Floras do Novo Mundo[2], fica desde logo sintetizado o ambiente intelectual de onde iria germinar o espécime em estudo: ‘A curiosidade questionante investiu na realidade material.... Em suma, tudo mudou, para sempre’.

Detenhamo-nos neste momento, em que tudo mudou para sempre. Quantas camadas narrativas se acumulam nesta crisálida de tempo? Quantas memórias e recordações se sobrepõem? Quantas portas se abrem e fecham? Quantas léguas marítimas são percorridas? Quantas recolhas são feitas? E por quem? Como é transformada [transportada] a Natureza em coisa singular, tafomouseo-lizável? Em objeto desejável, experimental e, simultaneamente, útil e rentável? E que fazer destes testemunhos? Como acrescentar futuro a esse passado?

O método científico tem metodologias rigorosas, circunscritas, vive de paradigmas, dizem. Mas aqui, no Gabinete de Domingos Vandelli, as coordenadas são outras: nada se repete pois re-pensar é incluir temporalidade histórica, o rigor científico não equivale ao único rigor possível, o real são imagens – ficções reais. Olhar, ver e observar não são equivalentes.

Espécimes vegetais, animais e minerais, pratos e potes, terrinas e jarras, curiosidades, monstruosidades e anomalias. Testemunhos ambivalentes de ‘um livro sempre aberto’[3], onde a natureza não está ‘reduzida a um ponto’, onde, também por isso, é possível ‘instruir com prazer e facilidade’. Pois aqui a ‘memoria vem ajudada pelos olhos, e se conserva atenção pelo prazer da vista’.

Eis-nos no Gabinete de Curiosidades de Domingos Vandelli.

Trata-se, sobretudo, de uma questão de arrumação. Simbiose, num pretérito-mais-que-perfeito, entre o Gabinete e o Museu. Dispor por prateleiras ao sabor de um raciocínio que evoluiu a partir da própria necessidade de Existir. Pressupostos ideológicos sintetizados pelo seu autor, em numerosas lucubrações registadas como memórias. Objetivo imutável: fomentar a aprendizagem, a aquisição de conhecimentos, a investigação. Não parar por aí, que especulações sem utilidade não fazem um país evoluir. Sair para o campo, para o mato, para a floresta. Saber o que de si é refractado na estranheza de uma natureza até então inviolada.

Mudar de cenário: Viajar para além das Luzes: Levar bagagem: Registar:

Deposição de camadas. A diferença marca o percurso entre o barco, espaço flutuante, e o Museu, espaço estável, porto de chegada. Espaços irredutíveis onde é possível sentir a erosão da vida, da história. Construir utopias realizáveis em abstratos espaços de acumulação: no jardim, no museu encerrar a totalidade do mundo.

Entre o Brasil e África adensa-se o sertão nas memórias desérticas de Moçamedes. A utopia do desconhecido é resgatada na travessia do Atlântico. A viagem é o espaço de representação. Entre Vandelli e Alexandre Rodrigues Ferreira, o infinito sonho tropical. Mais tarde pressentido, perseguido por Luiz Wittnich Carrisso. O percurso, materialização conceptual: o objeto trans-figurado em palavras. Trans-mousealizado. Sistemática necessidade de perscrutar o indizível.

O Gabinete Entra no Museu

Analisar o processo de cristalização do tempo num Espaço de Tempo infinito, onde não é possível negligenciar essa fatal interseção, é questionar temporalidades descontínuas, prováveis realidades incompatíveis.

Galerias de objetos em confronto que refletem e resumem o Universo na ordem do exemplar. Na bifurcação, o passeio diletante dos amantes da História Natural. Recuar ao tempo das amizades que evoluem na exigência dos objetivos: não se tratava já, somente, de mera curiosidade mas de autêntica procura de aconselhamento científico, o que terá levado D. Pedro José de Noronha, 3º Marquês de Angeja, a contratar Domingos Vandelli para instalar e organizar o seu Gabinete e Jardim Botânico na Junqueira. Dai para a frente, a história é já bem conhecida. A observação controlada e a experiência regrada do naturalista persiste em condensar as vistas largas dos jogos da Natureza no espaço delimitado pelo rigor científico: comparar, selecionar, descrever, classificar, inventariar sistemática e rigorosamente. E, no final, já em Coimbra (ou entre esta, Lisboa e o resto do Mundo Novo), no universo não circunscrito aos espaços académicos, proporcionar informação metodicamente organizada e pragmaticamente útil. Abrir as portas do Museu para romper o cerco do Conhecimento, arejar o país como quem afirma a necessidade de fazê-lo crescer, económica e ideologicamente falando. Pensamento pós-moderno, diríamos.

‘A impossibilidade de poder se ver todas as produções naturais espalhadas em países tão remotos supre o museu; no qual como em um anfiteatro em uma vista de olhos aparece, o que contém o nosso globo…’[4]. Espaço de representação ambígua e ambivalente, onde o homo mineralis, escapando ao fluxo temporal e á dispersão espacial, se transforma em testemunho da pós-modernidade inscrita nos objetos: documentos que evocam a sua passagem e, simultaneamente, interrogam o devir histórico inscrito nas suas sucessivas re-interpretações e reorganizações, as quais definem a simbiose semântica entre o Gabinete de Curiosidades e o Museu Universitário. Lugar por excelência onde convergem tensões e pressões geradas pela evolução vertiginosa de ideais e expectativas. Do ideal do Saber e da necessidade de transmiti-lo ás gerações vindouras. Porque, ‘em última instância, conservaremos exclusivamente aquilo de que gostamos. Mas gostamos apenas daquilo que entendemos. E só entendemos o que nos ensinam’[5]. Ainda que só possamos conhecer verdadeiramente aquilo que criamos.