Com Prazo de Validade

AA

A. E. Maia do Amaral

Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra

O principal objetivo de um pigmento usado em tinta de escrever é obter com ela o maior contraste possível com a superfície de escrita. Daí a tentativa de fazê-la tão negra quanto branco seria (desejavelmente) o papel ou o pergaminho. Na tinta chamada de noz de galha (ou ferrogálica), que predominou na escrita manuscrita europeia, desde a época romana ao século XX, fazê-la mais escura só era possível aumentando o sulfato de ferro.

Foram diferentes as receitas usadas ao longo de séculos para fazer esta tinta, mas todas têm em comum o uso de sulfato de ferro, que se decompõe com a humidade em ácido sulfúrico, o qual corrói as fibras do papel. Todas estas tintas continham assim dentro delas a sua própria e inexorável destruição. E quanto mais densa fosse, mais escura e legível resultasse no presente, mais corrosiva se tornaria no futuro.

Os casos mais graves que conheci na minha experiência de bibliotecário são os da música manuscrita. É fácil de entender porquê: se quisermos encontrar um padrão que facilite ao máximo transformar um papel numa “renda” é fazer nele uma grelha de linhas paralelas horizontais e em cima delas colocar “semínimas” muito negras, bem carregadas de tinta, agarradas às suas hastes verticais. É a verdadeira receita para o desastre.

Nos manuscritos europeus usaram-se outras tintas (sobretudo para as ilustrações pintadas) que recorreram a pigmentos animais, vegetais ou minerais. Infelizmente, a que apresenta os mais graves problemas de conservação, a tinta ferrogálica, foi de longe a mais usada de todas. O desaparecimento a prazo de quase todo o património manuscrito europeu está assim assegurado, cientificamente.

Para terminar, não ficava bem com a minha conhecida sinofilia se não lembrasse aqui a tinta negra ainda hoje chamada “da China” (obtida com o muito mais estável negro-de-fumo) e a tinta yinni (cinábrio, usada para estampar os selos orientais), que tem propriedades preservativas e até inseticidas; é frequente ver suportes em papel oriental completamente comidos pelo bicho da prata onde a destruição termina ao aproximar-se do vermelhão de cinábrio: os bibliófagos evitam cuidadosamente as áreas onde a tinta foi aplicada. Como seria diferente se as nossas receitas europeias de tinta tivessem tido as mesmas preocupações…