Fahrenheit 451°

AA

A. E. Maia do Amaral

Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra

Quando se fala em queimas de livros, todos se lembram da Biblioteca de Alexandria, porém errando quase sempre nas datas e nos responsáveis: a “Grande Biblioteca” foi queimada no século I a.C., com muita probabilidade numa desastrada ação militar de Júlio César, durante a Primeira Guerra Alexandrina. A segunda biblioteca, a chamada “Biblioteca-filha” (e o Serapeum), foi consumida pelo fogo, a ordens do Patriarca Teófilo aos seus fanáticos seguidores cristãos, no século IV. O que parece mais extraordinário é que factos históricos bem estabelecidos sejam sempre tão mal recordados, nomeadamente culpando os árabes do Califa Omar, no século sétimo, pelo desastre irreparável.

Qualquer pessoa minimamente culta se lembra de exemplos como Alexandria, Opernplatz ou a Biblioteca Nacional de Sarajevo. Mas se lermos a impressionante compilação de Lucien X. Polastron, Books on fire, verificamos que foram milhares as bibliotecas que arderam ao longo da história. É leitura que convém fazer em ocasião de otimismo, porque é particularmente deprimente para quem gosta de livros.

Desde Ray Bradbury que todos sabemos que 451 graus Fahrenheit (233 graus Celsius) é a temperatura a que “o papel do livro arde e se consome”. Os livros têm esta relação íntima, antiga e perigosa com o fogo, parece que o seu destino é incendiarem-se, como em O Nome da Rosa.

Em todos os regulamentos de todas as bibliotecas de todos os tempos, é absolutamente proibido levar chamas para dentro do edifício. Por isso, antes da eletricidade, as bibliotecas só estavam abertas durante as horas de Sol mais abundante.

Preterea etiam precipimus quod nullus lucernam vel candelam in bibliotecam intromitat” (Preceituamos também, além disso, que ninguém introduza na biblioteca qualquer lâmpada de azeite ou vela), diz o Título 56 do Regulamento quinhentista da biblioteca do Colégio de São Pedro, de Coimbra.

Quando o património cultural fica nas mãos de publicitários, alguém se há de lembrar, mais cedo ou mais tarde, de encenar um evento noturno, à luz das velas. Esperemos que esses romantismos de pacotilha nunca aconteçam na “nossa” Biblioteca Joanina…