Nem Todos os Anjos Conseguem Voar

GP

Gilberto Pereira

Museu da Ciência da Universidade de Coimbra | Centro de Física da Universidade de Coimbra

Nem todos os anjos conseguem voar, mas existem alguns que podem elucidar-nos sobre algumas das propriedades da matéria.

Recordemos António Dalla Bella, primeiro professor de Física Experimental da Universidade de Coimbra, e a sua obra “Physices Elementa”, onde explica que as propriedades da matéria são analisadas segundo cinco atributos: quanto à sua extensão; quanto à sua divisibilidade e subtileza das suas partes; quanto à sua forma e à sua impenetrabilidade; quanto à sua densidade, volume e porosidade; e finalmente quanto à sua mobilidade ou inércia.

Para o estudo e demonstração experimental das referidas propriedades, foram incorporados no Gabinete de Física oitocentista da Universidade de Coimbra diversos dispositivos, entre os quais um curioso quarteto de anjos alados.

Segundo o Index Instrumentorum, inventário elaborado em 1788 por António Dalla Bella, com estes escultóricos objetos seria possível realizar 3 distintas experiências, para observar e interpretar a divisibilidade e a porosidade.

Será curioso referir que o 1.º anjo foi catalogado no Index Instrumentorum com o número de inventário “A.I.1” (número atual FIS.0137). Esta inscrição, gravada na base da escultura, indica que esta peça estaria arrumada na porta “A”, na prateleira “I” e com o número sequencial “1” no Index Instrumentorum. Atualmente o instrumento encontra-se incompleto, restando apenas a figura escultórica, que na sua versão original suportaria nas suas mãos um prato de madeira pintado de preto, onde era colocado um fino fio de ouro, para demonstrar a elevada divisibilidade da matéria.

O 2.º anjo também se encontra incompleto. Inventariado por Dalla Bella com o número “A.I.3.” (FIS.0138), penderia das suas mãos um fio de ouro enrolado num carrinho de madeira. Com este segundo elemento pretendia-se demonstrar a delicadeza e ductilidade da matéria e, para o explicar, Dalla Bella remete para a “Recreação filosofica”, a magistral obra de Teodoro de Almeida. Nesta obra a personagem de Eugénio admira-se de que uma onça de ouro (cerca de 28 gramas) consiga ser transformada num fino fio de ouro, capaz de unir Lisboa a Madrid (cerca de 600 quilómetros).

Com o número de inventário “A.III.16.” encontra-se identificado o conjunto completo composto por dois anjos que suspendem, cada um, um crivo esférico de ferro e outro de ouro. Os crivos, com orifícios de 1 mm de diâmetro, assentam simultaneamente numa trempe de ferro. Ao colocar mercúrio no seu interior, observa-se que o líquido não atravessa nenhum dos orifícios devido a elevada tensão superficial. No entanto, no crivo de ouro observamos que o mercúrio atravessa o metal, o que explicava a porosidade da matéria. A forma e a dimensão das partículas de mercúrio permitiam que este atravessasse o ouro, mas não o ferro. A composição da matéria e suas propriedades sempre intrigaram o ser humano e para os físicos do século XVIII a noção de porosidade dos corpos ajudava a explicar conceitos como a densidade ou a solubilidade.

Quando, em 1937, Mário Augusto da Silva começou a reorganizar o Gabinete de Física oitocentista, apenas encontrou a trempe e os dois crivos, já que as quatro esculturas em bronze dourado se encontravam no Museu Machado de Castro, onde tinham sido depositadas em 1914, pelo então diretor do Laboratório de Física, Henrique Teixeira Bastos, muito possivelmente devido ao seu valor estético.

Foram posteriormente resgatadas para o Gabinete da Universidade onde atualmente se encontram expostas.