250 Anos Depois, Recomeçar

HP

Helena Pereira

Museóloga, Museu da Ciência da Universidade de Coimbra

Cumprindo-se em 2022 os 250 anos da fundação do Museu ou Gabinete de História Natural da Universidade de Coimbra (MHNUC), o momento é de celebração de um projeto, mas igualmente de reflexão. O Museu da Ciência, enquanto sucessor do MHNUC, é herdeiro da mentalidade e das práticas museológicas contemporâneas.

A efeméride impõe que se esteja à altura do desafio. Num momento em que se reconhece ser necessário descolonizar mentalidades, o museu pode constituir-se como palco para essa mudança. Hoje, ao visitar o Museu da Ciência, o visitante depara-se com os ecos de narrativas coloniais. E ainda que a informação acerca desse período possa ser lacónica, a simples etiqueta com a proveniência do objeto é reveladora desse passado. É talvez uma narrativa silenciosa, mas presente.

A transformação tem sido tranquila. Ao longo do tempo a desconstrução tem vindo a ser feita. Mais recentemente, em 2016, foi desmontada a sala do Brasil e, em 2019, a sala de África. O papel do Museu não se tem, porém, circunscrito à desmaterialização de narrativas. O Museu tem concebido e deve continuar a proporcionar novas leituras, mais inclusivas, sobre os seus acervos.

Numa palavra, recomeçar. Etimologicamente, recomeçar significa começar novamente, e o termo implica necessariamente um olhar experimentado ou sob novas lentes. Descolonizar exige o reconhecimento. Reconhecer as falácias sobre as quais assentava o domínio e subjugação do outro é sem dúvida fundamental. O Museu da Ciência enquanto baluarte da diversidade em toda a sua extensão — natural, cultural, e também, porque não, política — dispõe de ferramentas únicas (as suas coleções) e é a partir da sua reinterpretação que pode oferecer o seu contributo.

Propondo narrativas que reconheçam o papel essencial das populações de regiões longínquas na transmissão do conhecimento sobre a fauna e flora locais, contributo inestimável para a ciência. Reconhecendo a diversidade e a riqueza das suas culturas e, sobretudo, afirmando a necessidade de coexistência de diferentes modos de vida e culturas na sociedade atual.

O museu pode também ser um lugar de denúncia. O vaticínio de que essas culturas estariam condenadas, uma vez em contato com o ‘desenvolvimento tecnológico do Ocidente’, não se cumpriu. Modos de vida ancestrais permanecem. Em 2018, Charlie Hamilton James, fotógrafo da revista National Geographic, acompanhou diversas tribos da Amazónia e retratou materiais e modos de vida não muito distintos dos que Alexandre Rodrigues Ferreira revelou e recolheu na viagem que empreendeu há mais de 200 anos ao Brasil e de que existem importantes registos no Museu da Ciência. Vestes, acessórios e apetrechos de caça, simples, fabricados com matérias locais. Pequenos animais, tatus, tartarugas, macacos e pessoas que interagem e compartilham lugares.

Em pleno século XXI, perante as atrocidades que persistem na Amazónia e em muitos locais do mundo, em que avança o aniquilamento de ecossistemas e de culturas, o Museu da Ciência, que conserva nas suas coleções evidências do mundo natural e cultural, pode servir como interlocutor privilegiado na mudança de paradigma. Resta a evidência, descolonizar continua a ser preciso.