Os Intocáveis

AA

A. E. Maia do Amaral

Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra

Existem, pelo menos, duas formas de uma biblioteca dar acesso aos seus fundos: formalmente, através dos catálogos com os diferentes pontos de acesso (autor, título, assunto, classificação, etc.) que são as ferramentas de busca que os bibliotecários preparam para os utilizadores; mas também informalmente, pela consentida e incentivada deambulação do leitor frente às estantes: olhar as lombadas, abrir o livro, ler um pouco. Esta forma de encontrar coisas que podem interessar, inteiramente dependente do acaso, leva-nos a descobrir até o que não procurávamos, como muito bem lembra Umberto Eco no seu clássico “A biblioteca”.

A Biblioteca Geral da UC foi pensada durante a ditadura do Estado Novo sem acesso do público às estantes. Nada deixado ao acaso, nada de improviso, enfim, tudo a fazer-se pelos “canais apropriados”, nada de liberdades e libertinagens nas estantes.

Pode legitimamente especular-se o quanto mais satisfatório poderia ser o serviço que presta a BGUC, se o leitor estivesse autorizado a fazer o “browsing” das estantes. Quantas descobertas inesperadas? Quantas ligações produtivas entre temas? Pode especular-se, sim, mas esta não será uma especulação útil, porque a disposição dos depósitos no edifício não permite sequer pensar em abri-los aos leitores e mudar o paradigma; são mundos eternamente separados, com as prateleiras dos livros apenas acessíveis aos funcionários.

Devido à pandemia de SARS-Cov 2, os livros das bibliotecas não podem agora ser manuseados. Talvez só com esta proibição de tocar nos livros os utilizadores das bibliotecas públicas tenham percebido inteiramente a sua importância. Mas não foi só isso que a pandemia mudou: nem pensar num ecrã táctil para uso público. Quantos equipamentos e rotinas terão, por isso, de se substituir? Eis o binómio crise-oportunidade no seu melhor. Adeus quiosques eletrónicos, que este tempo está mais para as aplicações de telemóvel ou para os livros eletrónicos.