Apresentação

Ainda antes do final do ano 2000, já o século XX se constituía como problema em diferentes campos das ciências sociais e humanas. A coincidência entre o final do século e a conclusão de alguns dos seus fenómenos políticos mais emblemáticos – o comunismo no chamado Bloco de Leste, a Guerra Fria – pareceu reforçar a urgência de balanços e novas narrativas. O século surgia aí como uma ‘era dos extremos’ (Eric Hobsbawm) – e a Europa novecentista como um ‘continente sombrio’ (Mark Mazower) –, um ‘mundo de fantasia e catástrofe’ (Susan Buck-Morss) alternando entre a promessa utópica e a queda no abismo, ou, para citar alguns títulos mais recentes de histórias do século, uma ‘ida e volta ao inferno’ (Ian Kershaw), oscilando entre a ‘barbárie e a civilização’ (Bernard Wasserstein) e exigindo uma ‘história em fragmentos’ (Richard Vinen).

Como estes títulos sugerem, a dramatização do século foi para muitos uma dimensão inseparável das formas narrativas que ao longo dele proliferaram. É neste sentido que se pode falar em ‘acontecimentos modernistas’ (Hayden White), ou seja, acontecimentos cuja dimensão exige a inventividade do modernismo, ou das próprias formas modernistas como expressão de um século percorrido pelo ‘antagonismo’ (Alain Badiou). No limite, a imagem do século pode coincidir com o olhar de uma arte moderna, o cinema (Francesco Casetti falou do ‘olho do século’), ou mesmo com uma das suas técnicas artísticas mais marcantes, como quando Georges Didi-Huberman fala da montagem como o ‘olho da história’ no século XX.

O próprio século XXI pensa-se e representa-se a partir das muitas versões com que o século anterior é visto como ‘a última catástrofe’ (Henry Rousso), um marcador temporal da história do tempo presente. Ao longo das últimas duas décadas, a historiografia, a filosofia, a ciência política, os estudos artísticos, entre inúmeras outras disciplinas, têm insistentemente refletido sobre o presente a partir das múltiplas narrativas produzidas ao longo, ou a propósito, do século XX. Mais do que um período histórico específico, o século passado constitui-se aí como um conceito, ou imaginário, que determina formas de pensamento político e representações sociais e artísticas. A sua proximidade, por outro lado, o dramatismo dos seus acontecimentos mais marcantes, bem como a profusão de formas audiovisuais que o percorreram, fazem do século XX um objeto particularmente propício à produção de memória e à emergência de novas fontes, arquivos e mediações históricas.

O congresso Pensar o Século XX. Olhares do século vinte e um procura situar-se nos debates contemporâneos sobre a história, memória e herança do século XX, contribuindo para a diversificação e complexificação das suas narrativas e representações.