/ A Biblioteca

As estátuas e os baixos-relevos da fachada principal

A história da cidade de Coimbra é indissociável da história da Universidade; e ambas se refletem nos edifícios que se sucederam no preciso lugar onde hoje se encontra a Biblioteca Geral. Quando, em 1308, D. Dinis transferiu pela primeira vez o Estudo Geral de Lisboa para Coimbra, terá sido neste local que ficou instalada a sua sede (os chamados «Estudos Velhos»). Em meados do século XVI, depois da fixação da universidade portuguesa em Coimbra, foi aqui construído, para apoio a clérigos pobres, o Colégio Real de São Paulo-o-Apóstolo (inaugurado em 1563, um ano após a carta régia que determinou a sua incorporação na UC).

Após a extinção das Ordens Religiosas (1834), o velho Colégio (que sofrera danos graves no terramoto de 1755) conheceu outros destinos: no edifício desafetado instalou se a Academia Dramática (1837), a Nova Academia Dramática (1839) e o Instituto (1849), que mais tarde migraria para o vizinho Colégio de São Paulo Eremita (na zona do atual edifício do departamento de Química, onde se viria a dar a famosa Tomada da Bastilha, em 1920). Também o Clube Académico (1861), que se converteu em Associação Académica e Dramática (em 1868) e que daria origem à Associação Académica de Coimbra (em 1887), teve toda a sua atividade no extinto Colégio, até à demolição deste em 1888, na sequência de um grave incêndio.

Nessa altura, aqui se quis construir de raiz o Teatro Académico (a partir de 1889 e com muitos sobressaltos). Porém, a obra do Teatro Académico nunca chegou a ser completada e acabou por ser abandonada, com entulhamento da parte construída e transformação daquele espaço num terreiro. Em julho de 1912, uma portaria mandou que o edifício inacabado fosse cedido à Faculdade de Letras, que depois o adaptou e completou para seu uso próprio (refira-se que mantendo preexistências arquiteturais do primitivo Teatro).

Entre 1945 e 1951, no âmbito da edificação da nova cidade universitária pelo Estado Novo, foi construído um novo edifício para a Faculdade de Letras, em terreno fronteiro que pertencia à família do escritor Eugénio de Castro. Pela mesma época, o edifício que fora sucessivamente o dos «Estudos Velhos» dionisinos, o do Colégio Real de São Paulo-o-Apóstolo (1550–1834), o da Academia Dramática, o da primeiríssima sede da AAC (1877–1888) e o da Faculdade de Letras (1912–1951) foi, por fim, adaptado a Biblioteca Geral, que entrou em funcionamento efetivo em 1962. Com exceção do piso da entrada e das fachadas, a atual BGUC acolhe grande parte da memória da antiga Faculdade de Letras.

O Estado Novo pretendia criar na alta coimbrã um verdadeiro campus universitário. Os respetivos ideais, caracterizados pela monumentalidade e grandeza, manifestavam-se na arte e na arquitetura, usadas pelo poder político no seu propósito de resistência, durabilidade e projeção futura.

O edifício da Biblioteca é obra do arquiteto Alberto José Pessoa (Coimbra, 1919 – Lisboa, 1985), com colaboração próxima de José Ângelo Cottinelli Telmo (arquiteto, cineasta e homem de cultura excecional). Alberto Pessoa participou em vários projetos da Cidade Universitária de Coimbra e foi também um dos arquitetos do Museu Calouste Gulbenkian, em Lisboa. A versão definitiva da fachada da Biblioteca Geral, a única parte do edifício feita de raiz, foi aprovada em 1949, sendo ricamente ornamentada por dois grupos escultóricos nos cunhais e seis painéis em relevo. O edifício foi inaugurado em 1956, embora só tenha começado a funcionar em pleno alguns anos depois.

Os dois grupos escultóricos laterais da fachada principal são da autoria do escultor modernista António Duarte Silva Santos (Caldas da Rainha, 1912 – Lisboa, 1998). Esculpidos entre 1944 e 1950, foram integrados na fachada em 1951. Estas duas tríades esculpidas em pedra de Lioz (material de tipo calcário, abundante na região de Lisboa), num «naturalismo simplificado», têm 3,50 m de altura e pretendem celebrar a dignidade do conhecimento universal. Provavelmente, representam as Sete Artes Liberais*, embora se coloquem dois problemas: por serem apenas seis figuras; e por incluírem figuras masculinas e femininas (quando, tradicionalmente, as sete artes liberais são representadas apenas por mulheres).

Designa-se por «Artes Liberais» o programa de ensino concebido por Marciano Capela na Antiguidade Tardia, por volta do ano 400, mais tarde adaptado no período medieval, altura em que surgiria subdividido em duas áreas disciplinares: o Trivium, que incluía a Gramática, a Retórica e a Dialética; e o Quadrivium, composto pela Aritmética, pela Astronomia, pela Geometria e pela Música.

* Designa-se por «Artes Liberais» o programa de ensino concebido por Marciano Capela na Antiguidade Tardia, por volta do ano 400, mais tarde adaptado no período medieval, altura em que surgiria subdividido em duas áreas disciplinares: o Trivium, que incluía a Gramática, a Retórica e a Dialética; e o Quadrivium, composto pela Aritmética, pela Astronomia, pela Geometria e pela Música.
Grupo escultórico esquerdo
Grupo escultórico direito

O grupo do lado esquerdo (duas figuras masculinas e uma feminina) representará as artes do Quadrivium. As esculturas seguram ramos de louro, um livro e uma lira. O grupo do lado direito (duas figuras femininas e uma masculina) corresponderá ao Trivium e as esculturas exibem um rolo de papiro e ramos de louro.

Uma possível explicação para a diversidade de género será a tradicional correspondência entre as artes liberais e os “sete planetas”: a Gramática identifica-se com a Lua (de facto, um satélite natural da Terra), a Retórica com Vénus, a Dialética (ou Lógica) com Mercúrio, a Aritmética com o Sol (de facto, uma estrela), a Astronomia com Saturno, a Geometria com Júpiter e a Música com Marte. Esta correspondência explica o grupo da direita, com as alegorias da Gramática (Lua) e da Retórica (Vénus) a ser representadas por figuras femininas, enquanto a da Dialética (Mercúrio) é representada por uma figura masculina. Todavia, deixa por explicar o grupo da esquerda, que é composto por dois homens e por uma mulher, apesar de os planetas do Quadrivium serem todos masculinos.

A decoração da fachada principal é completada por seis baixos-relevos «modernistas» em pedra de Outil, com 3m2 de relevo, selecionados pelo então Diretor da Biblioteca Geral, Doutor Manuel Lopes de Almeida (lente da Faculdade de Letras, foi Ministro da Educação Nacional em 1961-1962), datados de 1950 e assinados por Afonso Alexandre Duarte Angélico (Caldas da Rainha, 1914–1977). Se nas várias Faculdades se podem observar representações relativas a cada área do saber, na Biblioteca Geral pretendeu-se representar a totalidade do conhecimento. Aqui estão representadas (da esquerda para a direita) a Biologia, a Física, a Matemática, a Lógica, a Gramática e a Ética.

Física

Biologia

Lógica

Matemática

Ética

Gramática

As áreas de saber/ disciplinas reconhecem-se pelos símbolos decorativos usados em cada painel. Assim, temos: a Biologia (com a figura de um professor — lembrando Charles Darwin — segurando na mão uma caveira, rodeado por plantas e animais); a Física (veja-se uma figura humana que segura uma régua, tendo ao lado um microscópio e, em cima, a representação da estrutura do átomo e das partículas nucleares); a Matemática (representada através de uma figura rodeada por símbolos matemáticos); a Lógica (figura feminina tendo numa mão uma esfera armilar e na outra o que se pode interpretar como a personificação do Sol, tendo como fundo diversas estrelas e planetas); a Gramática (figurada por um professor sentado na sua cadeira, com uma grande chave na mão, a ensinar um menino que segura um livro); e a Ética (simbolizada por uma figura feminina que segura na mão esquerda uma planta e, na mão direita, uma caveira em vias de ser tocada por uma serpente).

Os seis painéis têm uma organização estrutural, que assenta numa composição que inclui as Ciências Exatas e as Letras, num caminho de interligação entre razão, metafísica, o uso correto de uma língua (e sua aplicação à escrita) e o verdadeiro impacto das ações humanas na sociedade envolvente. Ou seja, um percurso de sapiência.

Textos de Beatriz Matos França e de João Gouveia Monteiro. Fotografias de Beatriz Matos França

Bibliografia consultada:

BARRADAS, Jorge, Nota descritiva sobre o baixo-relevo em faiança policromada, Sala de Leitura da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, 1962.

COSTA, João Pedro Cardoso Gomes da, “O edifício da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra (1936-1956)”, in Boletim da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, vol.46/47, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2015/2016.

GONÇALVES, Carla Alexandra, “As esculturas dos cunhais da Biblioteca Geral”, in Preguiça Magazine, Coimbra, 2013.

ROSMANINHO, Nuno, O Princípio de uma “revolução urbanística” no Estado Novo: os primeiros programas da cidade universitária de Coimbra (1934-1940). Coimbra, Minerva, 1996.

-------------------------, O Estado Novo e a Arte: A Cidade Universitária de Coimbra. Lisboa, Edições Colibri, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2003.

-------------------------, Coimbra e o imaginário: a cidade entre o Romantismo e o Estado Novo. Vila Nova de Famalicão, Edições Húmus, 2020.