/ Como se Desenha uma Investigação

Um projeto para tornar mais inteligentes e sustentáveis os sistemas de armazenamento a frio, como arcas congeladoras e frigoríficos

Depois de viver e trabalhar em oito países, a nona escolha de lugar para chamar casa foi Portugal. Evandro Garcia chegou à Universidade de Coimbra (UC) com a vontade de colocar em prática os conhecimentos provenientes de mais de dez anos de trabalho na indústria e, em simultâneo, com a missão de aprofundar a forma de fazer investigação. Tem procurado corresponder a estas expectativas com o projeto de doutoramento “Sistemas solares isolados para o desenvolvimento sustentável: desenvolvimento e otimização de um sistema de armazenamento a frio com baterias térmicas para países em desenvolvimento”, orientado pelo professor catedrático Aníbal Traça de Almeida. Frequenta o doutoramento em Sistemas Sustentáveis de Energia, no âmbito da Iniciativa Energia para a Sustentabilidade da UC, onde cruza a refrigeração, os sistemas solares e o desenvolvimento sustentável para apresentar uma forma inovadora de fazer uso de arcas congeladoras e frigoríficos cada vez mais inteligentes, e menos dependentes da rede elétrica, que no futuro, não sirvam apenas populações de países em desenvolvimento, mas também as sociedades mais industrializadas.

Que projeto de investigação estás a desenvolver?

Estou a desenvolver e a otimizar uns protótipos de frigoríficos e arcas congeladoras, assim como baterias térmicas, que funcionam com painéis solares, destinados a populações de países em desenvolvimento, nomeadamente a África Subsariana. Para dar uma ideia mais clara do que estamos a fazer, posso dizer que desenvolvemos contentores através de impressão 3D e, dentro desses contentores, colocamos uma solução salina que funciona como bateria térmica. E o processo funciona da seguinte forma: durante o dia, a luz solar fornece eletricidade ao sistema, que vai fazer os compressores (tanto da arca, como do frigorífico) funcionarem e vai gerar frio dentro dos protótipos. Esse frio refrigera alimentos, bebidas ou vacinas e também baterias térmicas. E as baterias térmicas vão acumular e reter esse frio gerado durante o dia. À noite, quando não há luz solar, os compressores são desligados. Porém, o frio dentro dos protótipos é mantido, porque essa bateria térmica vai ceder esse frio, mantendo refrigeradas vacinas, comidas e bebidas. E este ciclo reinicia-se todos os dias.

Atualmente, já são usados alguns protótipos similares, mas o projeto pretende inovar o que tem sido feito. Para isso, estamos a desenvolver um controlador específico para controlar as cargas térmicas, a energia solar e as temperaturas das baterias térmicas, com recurso a técnicas de machine learning. E esse controlador vai permitir que o frigorífico ou a arca sejam um equipamento inteligente. Ou seja, o equipamento vai estar praticamente “consciente”, no sentido em que ele vai entender o comportamento do utilizador. Por exemplo, se o frigorífico for usado por uma família que trabalha o dia todo fora e o usa mais durante noite, ele vai perceber que a noite é o período crítico de utilização. E como nesse período não tem energia solar, ele precisa que as baterias térmicas sejam bem carregadas. Conforme os dias vão passando, ele vai acumulando esses dados e vai processá-los e otimizá-los, como se a máquina estivesse a aprender. Essa é a grande inovação do projeto.

Um frigorífico com baterias térmicas que funciona durante o dia parece muito bom. Mas o nosso vai estar acoplado a esse sistema inteligente que se vai adaptar ao comportamento do utilizador. E pode também ser aplicado nas nossas casas, se o projeto for aplicado em países industrializados. Esse controlador com machine learning vai permitir desligar o frigorífico da rede elétrica durante os horários de pico e ligar novamente durante a madrugada, ou nos horários em que o utilizador o usa menos, deixando a bateria térmica preparada para que use o mínimo de energia possível da rede nos momentos de maior utilização. Essa é a grande diferença face ao que já está sendo feito, algo que nos rendeu a menção de inovação do Governo Britânico e também contactos de fabricantes que querem conversar connosco sobre o que estamos a fazer.

Como é que surge a oportunidade de desenvolveres este projeto de doutoramento?

Fiz o meu mestrado na Alemanha, voltado para as energias renováveis. Durante esse projeto, fui selecionado para trabalhar junto com a Agência Alemã de Desenvolvimento Internacional (GIZ). Eles têm escritórios em vários lugares do mundo e eu escolhi ir para o escritório na Indonésia, que fica em Jacarta. Por um semestre, eu morei lá, trabalhei nos projetos junto com os alemães e também com os indonésios, e escrevi a minha dissertação de mestrado. O projeto em que estava a trabalhar também era voltado para o mesmo tópico que estou a trabalhar no doutoramento, porém direcionado para salas refrigeradas.

A Indonésia é o maior país arquipélago do mundo, tem mais de 18 mil ilhas, e a população que vive da pesca é muito grande. É um país muito quente, onde há verão quase o ano todo, e para manter os peixes frescos e evitar desperdício de comida, é mais necessária a refrigeração. Por isso, desenvolvemos um projeto para que pequenas salas refrigeradas fossem instaladas em comunidades pesqueiras. Cada pescador podia deixar refrigerado o seu peixe para vender nos mercados locais durante o dia e, assim, ter uma sustentabilidade maior na comunidade.

Quando vim para a Universidade de Coimbra para fazer o meu doutoramento, descobri que havia um projeto muito parecido. Fui conversar com o professor que coordenava o projeto, Aníbal Traça de Almeida, e ele achou interessante a minha experiência e me convidou para fazer parte do projeto “Energy-Efficient Off-Grid Refrigerators for Africa Rural Electrification”, financiado pela Efficiency for Access Coalition (UK Aid, Governo do Reino Unido) e pela IKEA Foundation. A UC foi a única universidade em que eles enxergaram capacidade de inovação e de desenvolvimento. Foi um projeto interessante, 80% parecido com o que eu já havia feito no mestrado, o que me permitiu ter conhecimentos para desenvolver os protótipos.

Por que escolheste a Universidade de Coimbra?

Quando estava a pensar fazer doutoramento, estava à procura de algo que não fosse tão académico e tão focado na parte teórica. Gostava que tivesse alguma coisa mais prática. Por causa dos anos que trabalhei como engenheiro e de o meu mestrado ser mais industrial, acho que teria muita dificuldade se fosse uma coisa totalmente teórica.

Comecei a pesquisar e vi que na minha área só havia três lugares no mundo que tinham esse tipo de proposta. A Universidade de Coimbra era um desses sítios e eu acabei aplicando aqui, para o programa de doutoramento em Sistemas Sustentáveis de Energia, no âmbito da Iniciativa Energia para a Sustentabilidade, um programa multidisciplinar com estudantes de vários países do mundo, que não está condicionado a um só departamento ou faculdade. Gostei dessa abordagem da UC, pelo facto de ser algo voltado para a inovação, sustentabilidade e empreendedorismo. Gostei dessa multidisciplinariedade do curso e foi isso que me fez vir.

Em que momento do teu percurso é que surge o interesse pela área da sustentabilidade?

Desde criança que gosto de eletricidade. Os meus pais saíam para trabalhar e eu desmontava os equipamentos elétricos em casa e montava antes de eles voltarem, claro, para não ficar de castigo! Acho que percebi cedo o queria seguir, não tive aquela dúvida que alguns jovens têm. Para mim, foi um caminho bem tranquilo.

Com relação às energias renováveis e à sustentabilidade, acho que foi na licenciatura, vendo as inovações que estavam a acontecer e começando a entender um pouco mais sobre crises energéticas, nomeadamente os problemas que alguns países ou localidades tinham. Também começou a haver um boom de energia solar mundialmente e eu comecei a me interessar por essa área. E decidi que no próximo passo do meu percurso gostaria de ir mais para as energias renováveis.

Foi no mestrado que aprendi não só a parte técnica das renováveis, mas também a parte de sustentabilidade, que era algo não tão abordado na licenciatura. E comecei a interessar-me pela importância que isso tem para as comunidades, não só na parte económica macro, mas pela forma como a sustentabilidade pode trazer maiores ganhos para as famílias e para os pequenos comércios. A partir daí, juntamente com as experiências que tive na Indonésia, Vietname, África e interior do Brasil, fiquei apaixonado pela área, sobretudo ao perceber que posso desenvolver alguma coisa para dar respostas, neste momento, a problemas urgentes que estamos a enfrentar.

Apesar de ser um trabalho orientado para regiões sem acesso à eletricidade, também é possível usar esse produto noutros lugares?

O projeto é focado em países em desenvolvimento e sistemas isolados, ou seja, zonas que não têm acesso à eletricidade. Mas esse sistema pode ser totalmente integrado no nosso dia a dia, porque, por exemplo, um frigorífico com baterias térmicas economiza muita energia. Poderíamos usar estratégias que poderão fazer melhor uso de horários em que a eletricidade é mais barata, por exemplo. Esta ideia foge um pouco da minha proposta de doutoramento, mas eu vejo que isso pode ser uma continuidade, num pós-doutoramento ou noutro projeto que possa vir a ser conduzido, e pode beneficiar todos, e não só os países em desenvolvimento.

No caso dessas zonas sem acesso à eletricidade, como funciona a aquisição desses frigoríficos por parte da população?

Na África Subsariana, por mais económicos que sejam os protótipos, é complicado as pessoas adquiri-los. Por isso, há um modelo de negócio para tornar o processo acessível. Há alguns fabricantes que utilizam um sistema chamado pay-as-you-go (PAYGo), que funciona da seguinte forma: as famílias fazem um contrato com uma empresa que fornece o equipamento, um sistema de controlo, que vem já acoplado com uma bateria, e também uns painéis solares. A empresa faz toda a instalação e deixa a funcionar. Quando assina o contrato, a família escolhe como quer fazer as recargas (por exemplo, semanalmente ou mensalmente) e no fim do prazo que pagaram o sistema trava, mas pode ser novamente ativado. Essas recargas podem ser de uns cêntimos ou de poucos euros mensais, dependendo do local, porque esse tipo de iniciativas tem muitos subsídios governamentais internacionais. As empresas fornecem gratuitamente os equipamentos, as famílias fazem essas recargas por um período médio de dois anos e, após esses dois anos, o equipamento fica para a família, ficando desbloqueado, como se fosse um leasing. Além de frigoríficos, também podem usar televisores, lâmpadas LED, tomadas para recarga de telemóvel, rádio e tudo o mais. Há sistemas para eletrificar uma casa inteira.

De acrescentar ainda que a empresa que fornece os produtos também consegue fazer uma monitorização dos equipamentos. Se houver algum problema técnico, eles podem enviar técnicos; se tiverem algum problema de quebra, eles podem substituir; ou se tiverem algum problema ao tentarem fazer algo errado eles também têm direito contratual de recolher os equipamentos. É uma realidade adaptada para o que é comum em África. Já existe, mais ou menos, há uns cinco anos.

Depois de dez anos a trabalhar na indústria, como é que surge o salto para a academia?

No Brasil, é muito comum as pessoas estudarem durante a noite e trabalharem durante o dia. E eu fiz isso enquanto estava a estudar Engenharia Elétrica: trabalhava como técnico durante o dia e à noite estudava. Quando era estudante, conheci a International Association for the Exchange of Students for Technical Experience (IAESTE), que promove estágios remunerados para estudantes, mais voltada para a área das Ciências Exatas. E, em 2010, fiz o primeiro estágio através da associação. Fui para a Alemanha, achei a experiência interessante e, a partir daí, comecei a fazer estágios periódicos. Estive na Índia, Gana, África, Sérvia e a última experiência foi no Vietname. Essas oportunidades abriram muito os meus horizontes e fizeram-me perceber que conseguiria ampliar as minhas possibilidades profissionais, académicas e principalmente pessoais.

Se tivesse ficado no Brasil, acho que teria seguido o meu plano inicial, que era crescer na indústria, subir a cargo de gerência, mas, por outro lado, fui começando a achar interessante ter também essa experiência internacional e ver quais as oportunidades que surgiriam nesse âmbito. Enquanto estava no Gana, em 2015, acabei aplicando para uma bolsa de mestrado do governo alemão (DAAD) e acabei sendo contemplado com essa bolsa para estudar na Alemanha, na área de energias renováveis. Acabei também sendo aprovado na universidade e fiz o mestrado lá. Foi um mestrado profissional, mais voltado para dar resposta às necessidades da sociedade de hoje em dia. E comecei a perceber que o doutoramento podia ser um bom next step na minha carreira, para ampliar os horizontes e aprender mais técnicas de investigação.

Quais têm sido os maiores desafios no processo de construção deste um projeto de investigação de doutoramento?

Começaria por destacar a pandemia, que foi um desafio para todos. Cheguei a Coimbra três/quatro semanas antes do primeiro lockdown e foi uma sensação muito estranha. Quando estava começando a conhecer a cidade, a cidade esvaziou. Além da pandemia, destacaria a incerteza das coisas. Eu vim com a minha esposa, tínhamo-nos um ao outro – isso foi muito bom –, mas houve sempre a preocupação com a família em outro continente, não sabendo o que ia acontecer.

Destacaria também uma outra coisa que aconteceu também no ano passado – que é muito bom, mas também muito desgastante –, quando me tornei papai. Foi desafiante ser pai de primeira viagem, aprendendo a lidar com um bebé, com noites mal dormidas, privação de sono, algo que impactou bem a qualidade e a fluidez da investigação – e ainda impacta.

Outra coisa que me marcou foi ter de adaptar o meu pensamento de indústria e de engenheiro ao contexto académico. Apesar de este ser um projeto prático, meu orientador é professor catedrático, ele dá aulas há mais de 40 anos e, muitas vezes, prefere uma abordagem um pouco mais tradicional. E eu sempre fui treinado pelo mercado de trabalho a explicar ideias complexas de uma forma simples para um público geral, enquanto na academia é prezado usarmos a complexidade da linguagem científica para um público restrito.

Outro ponto que destacaria é o facto de o doutoramento ser uma atividade um pouco mais solitária. E ter um grupo de apoio de amigos, seja para tomar um café, conversar ou fazer atividades em grupo, é importante para ajudar um pouco a saúde mental. Fazer outras atividades que não sejam académicas, como praticar algum desporto, manter uma boa alimentação diária e fazer alguma atividade prazerosa no tempo livre, é muito bom. Estamos pilotando um corpo o tempo todo, e esse corpo tem de funcionar bem para nos ajudar.

Além das atividades físicas e sociais, sendo um pouco cliché, acho que a organização também ajuda. Atualmente, para o bem e para o mal, temos acesso a uma infinidade de informação, de aplicações, de softwares, de redes sociais e podemos usá-las a nosso favor. Temos muitas ferramentas de organização. O cérebro é muito bom para ter ideias, mas para reter e organizar nem sempre é das melhores ferramentas. Por exemplo, tenho uma aplicação só para anotar lembretes. Coloco todas as ideias que vou tendo, deixo lá e fico com a cabeça um pouco mais leve. Nos meus momentos de organização, vejo o que está lá e coloco em blocos de tarefas dentro da agenda. Também tenho um smartwatch, que fica sincronizado com o telemóvel, e quando tenho de fazer alguma coisa o smartwatch vibra e me avisa. Claro que ele não vibra com todas as notificações, só com a agenda e coisas importantes para o meu dia a dia, porque eu não quero ser escravo do meu telemóvel. Ele fica no silencioso 24 horas por dia e só vibra quando tenho alguma coisa a fazer ou se a minha esposa ou orientador estão me ligando. O resto só vou ver quando tiver um tempo.

Outro ponto importante é a consistência. Devemos procurar ter ritmo de trabalho e, por exemplo, definirmos todos os dias uma hora para escrever. Se não sair nada, seja gentil com você mesmo. Não tem problema, você estava lá, você fez a sua parte e amanhã vai ser melhor. Acho que na sociedade de hoje em dia não somos tão gentis com nós mesmos. Somos gentis com os outros, com os amigos, com os parentes, mas nos autocriticamos muito. Perceber isso me ajudou muito na saúde mental e a ser mais produtivo. Mesmo que eu tenha de fazer uma escrita técnica e não consiga fazer nada, eu começo a escrever qualquer coisa, e no parágrafo seguinte já estou a escrever o que eu preciso.

Por fim, destacaria ainda o facto de a UC fornecer vários apoios aos estudantes, como laboratórios de escrita e outros cursos de boas práticas e de comunicação no Instituto de Investigação Interdisciplinar. Toda a vez que aparece alguma coisa que acho relevante, eu me matriculo. Também leio os e-mails que recebo da UC, porque muitos têm algumas oportunidades interessantes e, outras vezes, também faço uma busca ativa por informação.

Se necessário, a UC também promove apoio psicológico para os estudantes. Eu fiz uso disso, e ainda faço. Tinha um pouco de preconceito disso, mas eu percebi a ajuda que esse apoio pode dar. Acho bem interessante tudo isso que a UC fornece. Até a minha filha usufrui de apoio, porque ela está na creche dos Serviços de Ação Social. No início, não sabia que a UC tinha creche para filhos de estudantes. Sou bem grato à estrutura de apoio da UC.

Produção e Edição de Conteúdos: Ana Bartolomeu, DCOM, Catarina Ribeiro, DCOM e Inês Coelho, DCOM

Fotografia: Paulo Amaral, DCOM

Edição de Imagem: Sara Baptista, NMAR

Publicado a 29.12.2022