/ À Procura de Respostas

Episódio #2 | ReSEED: os impactos da introdução de novas sementes na Península Ibérica ao longo dos séculos no que hoje plantamos, colhemos e servimos à mesa

Com financiamento de cerca de 1,5 milhões de euros do Conselho Europeu de Investigação, o projeto "ReSEED" é liderado pela Universidade de Coimbra e tem vindo a estudar, desde 2018, a forma como a introdução de novas sementes impactou a agricultura e a alimentação na Península Ibérica desde finais do século XV.

Publicado a 24.04.2024

Quando sentados à mesa, a maioria de nós não terá o hábito de questionar a origem do pimento, do tomate, do ananás ou da batata doce que vem no prato. Mas, na verdade, as sementes que deram origem a estes alimentos nem sempre foram cultivadas nos nossos solos, nem fizeram parte dos campos e dos pratos dos nossos antepassados. Todas elas, eram, há muitos séculos atrás, completamente desconhecidas e, caso não existissem, a forma como hoje nos alimentamos seria totalmente diferente, assim como seria outra a paisagem nacional.

Foi com a missão de desvendar o impacto que plantas vindas de outros continentes – sobretudo da América – tiveram na agricultura e na alimentação na Península Ibérica entre 1750 e 1950 que nasceu, a 1 de novembro de 2018, o projeto de investigação Resgatar a herança das sementes: uma nova abordagem à dinâmica da agricultura e da inovação desde o século XVIII (ReSEED), liderado pela Universidade de Coimbra (UC).

“Os portugueses e os espanhóis foram protagonistas de viagens transatlânticas e transoceânicas e, ao contactarem com novos territórios, com novas pessoas e com novas práticas agrícolas e alimentares, trouxeram com eles várias coisas, entre elas numerosas plantas”, contextualiza a líder do projeto ReSEED, docente da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (FEUC) e investigadora do Centro de Estudos Interdisciplinares da UC (CEIS20), Dulce Freire. A historiadora lembra que “hoje sabemos como cozinhar diversos alimentos que, um dia, foram totalmente desconhecidos, tendo acabado por ter um grande impacto na forma como nos alimentamos”.

Até meados do século XX, a Península Ibérica “foi um laboratório vivo de milhões de pessoas que experimentavam as novas sementes para perceber se tinham condições para produzir os alimentos que eram necessários, fazendo uso dos recursos que tinham disponíveis”, explica a investigadora. Assim, “relembrar estas experiências é crucial, pois podem ter soluções para os problemas da biodiversidade dos nossos dias, como a escassez de recursos alimentares e a necessidade de encontrar outros produtos alimentares que, entretanto, foram abandonados, como, por exemplo, o chícharo, uma semente que esteve esquecida e que hoje em dia volta a ser utilizada”, acrescenta.

Esta reconstrução do passado – que, como Dulce Freire frisa, “tem muitas informações e muito conhecimento que podem ser úteis na atualidade” – tem sido levado a cabo por um conjunto de investigadores, sobretudo da área da História, especializados em períodos como o moderno e o contemporâneo, e conhecedores de diferentes idiomas e regionalismo da Península Ibérica, para “explorar o melhor possível as informações escritas que temos identificado”, realça. Os historiadores têm lido “documentos escritos em épocas em que não havia computador, nem máquina de escrever, analisando o sentido das palavras, que foi mudando ao longo dos séculos”, partilha. Colaboram ainda com o projeto especialistas de outras áreas, como Biologia, Antropologia e Arquitetura.

Os documentos escritos analisados pela equipa do ReSEED são oriundos principalmente de dois grandes grupos: de instituições, como conventos, mosteiros ou casas senhoriais; e de viajantes, que foram visitando Portugal e Espanha, em viagens de negócios ou lazer. Cartas sobre encomendas, diários de viagens ou registos de contabilidade, por exemplo, permitiram “identificar e compreender as dinâmicas de introdução agrícola e alimentar das novas plantas, e de que forma isto teve impacto na agrobiodiversidade”, avança Dulce Freire.

Além das informações sobre as dinâmicas alimentares e de cultivo, estas fontes permitiram, igualmente, “estudar uma grande parte da vida quotidiana entre 1750 e 1950, mostrando como era a vida das pessoas comuns que viviam nas aldeias e exploravam os seus campos”, destaca a historiadora. Em épocas sem acesso a recursos informativos, com muita população analfabeta, “as pessoas tinham de tomar decisões, todos os dias, sobre se semeavam e dedicavam o terreno a uma semente nova, que não sabiam como se iria comportar; ou se dedicavam o terreno a uma semente mais antiga, que já conheciam porque os seus pais já a tinham cultivado antes com sucesso”, elucida.

A colagem de todas as informações – que a equipa de investigação do ReSEED encontrou em arquivos, como no Arquivo da Universidade de Coimbra – “deu-nos uma dimensão do cultivo e do desaparecimento de algumas sementes, mas também nos deu uma dimensão sobre as mudanças na agrobiodiversidade, que nos permite registar as mudanças no clima e na utilização do solo, como também a variabilidade genética das sementes”, destaca a docente da UC.

Esta análise permitiu, igualmente, “perceber os níveis de vida, as mudanças institucionais e políticas, e os impactos das guerras, das pestes e das pragas”, assim como identificar informações mais técnicas, como “o nome específico de determinadas espécies de sementes e plantas, informação muito importante para sabermos a espécie e variedade que era cultivada em determinada região”, elucida Dulce Freire. A coordenadora da investigação partilha que, por exemplo, “ao saber estes nomes conseguimos perceber como é que culturalmente as sementes fizeram o seu caminho por vários territórios e como é que as comunidades as usavam”.

Todo este levantamento e análise de fontes documentais permitiu, ao longo dos cinco anos e meio já decorridos desde o arranque do ReSEED, “publicar muitos livros e artigos, promover sessões em escolas e formações de novos cozinheiros”, avança a investigadora. Os materiais produzidos estão disponíveis no website do projeto, como, por exemplo, o livro Do manuscrito à mesa: cozinhar receitas do século XVIII. A publicação resulta de uma colaboração entre a equipa do projeto e estudantes da Escola de Hotelaria e Turismo do Estoril, que fizeram reinterpretações das receitas originais.

Para Dulce Freire foram muitas as surpresas que surgiram ao longo deste percurso, desde logo “ter sido possível identificar tantas plantas cultivadas através de documentos que, à partida, não pareciam ter essa informação”. Igualmente importante foi “perceber a diversidade de sementes que constituíram a alimentação dos nossos antepassados, assim como identificar que fomos perdendo a versatilidade de cultivar essas sementes”.

Na reta final do ReSEED, a equipa está a preparar três grandes ações para partilhar com a sociedade o conhecimento adquirido: uma exposição final, formações e uma base de dados inovadora, que vai reunir “dados importantes que vão permitir compreender as dinâmicas da biodiversidade através de um levantamento detalhado sobre o que foi cultivado na Península Ibérica ao longo dos últimos 500 anos”, avança a investigadora.

Além deste contributo alargado para compreender o que cultivavam, colhiam e comiam os nossos antepassados, o ReSEED espera também que a investigação possa servir de inspiração a outros projetos na Europa e no mundo, que, por sua vez, possam vir a “compreender as identidades locais e perceber como é que as sementes adaptadas localmente podem ser muito úteis para enfrentar as mudanças no clima e nos ecossistemas e a escassez alimentar”, remata Dulce Freire.

Assista ao vídeo sobre o ReSEED

Ficha Técnica


Nome

Rescuing seed’s heritage: engaging in a new framework of agriculture and innovation since the 18th century (ReSEED)

Coordenação Centro de Estudos Interdisciplinares da Universidade de Coimbra

Website

https://reseed.uc.pt/
Duração

6 anos (1 de novembro de 2018 a 31 de outubro de 2024)

Financiamento 1 467 727,00 euros
Entidade financiadora

Conselho Europeu de Investigação, através do programa Horizonte 2020 da Comissão Europeia

Número de investigadores envolvidos 12
Áreas de investigação envolvidas

História, Geografia, Arquitetura, Agronomia, Biologia (Genética e Botânica), Gastronomia e Arqueologia

Produção e Edição de Conteúdos: Catarina Ribeiro, DCOM e Inês Coelho, DCOM

Imagem e Edição de Vídeo: Ana Bartolomeu, DCOM e Marta Costa, DCOM